quinta-feira, 23 de julho de 2009

As partes de lá do medo. As partes de cá dos sonhos.

Compartilho com vocês uma nota/poema que recebi do amigo Jones Dari (*):


Ainda no Acre escrevi, em 2005, que a Amazônia é o jardim do mundo...
A Amazônia não é o pulmão do mundo.
É o jardim do mundo.
Um dia levaram perfumes, temperos e seivas.
Em outro levaram as sementes.
Dia desses levaram brilhantes.
Depois, ou antes, animais e aves coloridos.
Não satisfeitos, agora levam as árvores inteiras,
só desgalham para parecer verde só o selo.
Só não levam os jardineiros, que sem temperos,
sem árvores e sem ouro,
empatam nas periferias das cidades e da floresta,
insistindo e replantando as flores.

Hoje, lendo e relendo o poema, sinto, no fundo, bem no fundo da alma (se é que ainda a tenho ou se é que um dia a tive), que a opressão, a violência, a dominação, a exploração, a expulsão e, no limite, a morte, apenas dão pequenas pausas como para acomodar as modas para depois, percebendo que nem todas e todos se “modificam” – que é outra expressão para entrar na moda – voltam, espiam a noite, arrombam as portas, intimidam, roubam o quase nada e...

Sim, só agora talvez tenha compreendido o sentido mais profundo do roubo da Amazônia: levar os perfumes, temperos, seivas, sementes, brilhantes, animais, aves, árvores inteiras... Não, não é esta a etapa derradeira. O “fim”, e só aí a vitória dos ricos estará completa, é o roubo das próprias gentes da Amazônia, ou pela expulsão e morte, ou pela “modificação” – outra expressão para a ação de entrar na moda, na moda do desenvolvimento sustentável. Sim: des-envolver tudo, todas e todos. Só assim tudo, todas e todos estarão consumados. E mais nenhuma flor será depositada na casa última de Chico. Nenhuma.

Porque, “Caboquinho” (seringueiro Nonato Venâncio Flores, expulso no último dia vinte de junho de sua colocação, por um fiscal do ICMBio apoiado pela polícia federal) não pode mais plantar flores. Só, e olha lá, árvores “teca” para a exportação. “É preciso, diriam, que todas e todos demos uma chance à floresta... deixando-a em paz”. A floresta sem gentes, é isso, no final das contas, que o mercado de outras gentes quer. Porque as gentes seringueiras, ribeirinhas e índias têm o “péssimo” hábito de querer “re-existir” – que é outra expressão para resistência – em meio às árvores, que hoje parecem valer mais que as gentes, que a história, que a memória, que as mortes dos “Chicos” todos, que os tacacás, que as macaxeiras, que os peixes, que as jabutis, que as onças, que o Mapinguari, que o Curupira...

Porque depois, ou um pouco antes, outras gentes resolveram arrombar a casa de Osmarino (Osmarino Amâncio, morador da floresta na colocação Pega Fogo, no seringal Humaitá, na Reserva Chico Mendes), levando, como ele mesmo disse, a “minha dormida, meus utensílios, motosserra, furadeira de estaca, roçadeira”. Só não levaram Osmarino porque estava na luta junto com outros seringueiros, na cidade, nas periferias, na floresta, no sindicato (engraçado: fazendo igual ao amigo e companheiro Chico, aquele, o Mendes, enterrado em Xapuri).

E tiram do ar (como tiraram do ar programa de rádio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, porque a oposição ganhou a eleição). E tiram da terra. E tiram da casa. E tiram do rio. E tiram da floresta... “Mas quem tira?” Pergunto eu desavisado de tudo, de todas e de todos. De longe, bem de longe, Caboquinho, Osmarino e todos os entes humanos e não-humanos da floresta, sussurram dizendo baixinho que os que tiram são os mesmos que põem os fiscais, a lei, os projetos de desenvolvimento sustentável, os governos das florestas, os mercados da madeira e de tudo não-madeireiro que interessa aos que tiram, e aos que põem. Só não interessam as mulheres e homens, que, desde Wilson, insistem em permanecer onde estão, sem arredar pé.

E se Osmarino tem medo, é porque tudo, todas e todos também devem ter. “Voltei a sentir medo no Acre”. Sim, Osmarino: o medo é parte das gentes que temem não a morte pela morte, mas temem serem o último homem ou a última mulher e, ao olharem para o mundo pela última vez, não verem nada além de mania, megalomania, florestania... e a floresta inteira, sem gentes, só para a “sustentabilidade”...

E hoje, também, li e reli Chico Mendes, que parece ao mesmo tempo tão perto e tão longe. “Conseguimos vencer, [o seringal] Cachoeira transformou-se numa conquista para os trabalhadores e num exemplo temido pelos grupos econômicos que querem destruir a Amazônia”. Chico disse isso no início de dezembro de 1988... o final já sabemos como foi.

E hoje, mais do que nunca, também pensei: “o que mudou, Chico?” ... A Amazônia vira a cada dia mais “desenvolvimento sustentável”... “O que mudou, Osmarino?”

E não deixe o medo tomar conta de tudo, pois, como disse o Chico, só “parte dos meus sonhos já foram realizados”.

A outra parte, Osmarino, ele espera que nós realizemos.



Do amigo Jones
Dourados – Mato Grosso do Sul




(*) Jones Dari foi professor do departamento de geografia da UFAC, e atualmente é professor da Universidade Federal de Dourados.

terça-feira, 21 de julho de 2009

O Projeto Análise Econômica dos Sistemas de Produção Familiar Rural no Estado do Acre

Um dos principais desafios enfrentados pelos produtores rurais, agricultores, seringueiros, índios é compatibilizar a possibilidade de sua existência e reprodução em um ambiente natural rico em diversidade biológica, com um conjunto de limitações definidas como políticas governamentais, impostas pelo desafio de produzir de forma sustentável. O Acre sobre com a distância dos grandes centros, infra-estrutura de serviços precárias, além de sérios problemas com relação a saúde e educação.

Na busca de alternativas, o Departamento de Economia da Universidade Federal do Acre - UFAC, criou em novembro de 1996, o Projeto Análise Econômica dos Sistemas de Produção Familiar Rural no Estado do Acre (ASPF) , para analisar os sistemas de produção, verificando de forma meticulosa o que é produzido, como, em que condições, receitas e despesas dos produtores. Esse esforço gerou um conhecimento dos sistemas de produção familiar, de agricultores e de extrativistas que permite fazer proposições ao governo e produtores da combinação desses sistemas, permitindo um melhor aproveitamento de recursos e o cumprimento dos objetivos globais, desafios desse século.

O Projeto encontra-se sob a coordenação do economista Raimundo Cláudio Gomes Maciel, que nos concedeu uma entrevista sobre o trabalho que vem sendo realizado.

O que é o ASPF e como ele tem contribuído para o debate sobre a questão
ambiental?


Raimundo Cláudio: O projeto Análise Socioeconômica de Sistemas de Produção Familiar rural no estado do Acre (ASPF) é desenvolvido pelo departamento de Economia da UFAC. Foi criado justamente para contribuir na geração, análise e difusão de informações socioeconômicas e ambientais relacionadas aos colonos, ribeirinhos, seringueiros etc. As contribuições do ponto de vista ambiental podem ser evidenciadas a partir do levantamento e sistematização de diversos indicadores ambientais do ambiente rural acreano, tais como formas de uso da terra, recursos hídricos, saneamento, geração e destino de resíduos sólidos (lixo), entre outros, disponíveis em um banco de dados, cujos principais relatórios estão acessíveis à sociedade em geral em nosso site: . Ademais, temos várias publicações, entre artigos, dissertações e teses, que utilizam nosso banco de dados para discutir as questões ambientais, como causas dos desmatamentos na Amazônia, necessidade de valoração ambiental, política ambiental etc.

Um dos objetivos do projeto é propor políticas públicas, quanto aos cidadãos e sua atuação, o que tem sido feito?

Raimundo Cláudio: Um dos objetivos específicos do ASPF é justamente subsidiar as políticas públicas, bem como as próprias comunidades florestais da região. Dentre as políticas públicas trabalhadas com dados e equipe do próprio projeto ASPF é importante citar: a incorporação das Ilhas de Alta Produtividade como política pública estadual, no primeiro mandato do governo da floresta, 1999-2002; O planejamento dos primeiros pólos agroflorestais do estado do Acre, em meados dos anos 2000; A proposta de atualização dos valores previstos na Lei Chico Mendes, que prevê o pagamento de serviços ambientais aos seringueiros, em 2008, a ser implementada em 2009.

Quais as perspectivas de colaboração do ASPF com projetos semelhantes, na Amazônia e fora dela?

Raimundo Cláudio: Atualmente temos parcerias com projetos/instituições importantes, tais como Parque Zoobotânico da UFAC e SEBRAE, atuando em diversas áreas (avaliação econômica de produtos florestais, estudos de mercado etc.). Ademais, tivemos um bom contato com uma equipe de professores da UFPA, que trabalha com agricultura familiar. Ressalta-se que participamos de um módulo de um curso de especialização realizado pela referida instituição, apresentando nossa experiência, ficando indicadas possíveis colaborações futuras. Claro que um fator determinante nessas parcerias é a disponibilidade de recursos financeiros, que notadamente continua escasso em nossa região.

Fale sobre o trabalho que vocês apresentarão no VIII Congresso de Economia Ecológica.

Raimundo Cláudio: O artigo que foi submetido para apreciação e posterior apresentação no referido congresso versa sobre a problemática do lixo rural, em particular, como estamos na Amazônia, da sua disposição no ambiente florestal. A importância da discussão pode ser evidenciada quando se afirma que a coleta e manejo adequado do lixo nas florestas são praticamente inexistentes e que, portanto, vislumbram-se sérios riscos de deterioração dos recursos ambientais. Assim, busca-se levantar o debate em torno do tema e sensibilizar as políticas públicas para a resolução dessa questão face aos discursos referentes ao desenvolvimento sustentável na Amazônia.



Raimundo Cláudio Gomes Maciel é economista, doutor em Economia Aplicada, com área de concentração em Meio Ambiente, Professor Adjunto do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas, departamento de Economia, área de gestão de recursos naturais, da Universidade Federal do Acre (UFAC). Contatos: (68) 3901-2665; (68) 9961-0368; e-mail: rcgmaciel@ufac.br ou rcgmaciel@bol.com.br

domingo, 19 de julho de 2009

Florestania às avessas: as disputas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e o desenvolvimento sustentável no Acre

Isac Guimarães


O acompanhamento do processo conflituoso que vem marcando a eleição para a presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais-STR de Xapuri – trabalhadores em grande parte ocupantes da Reserva Extrativista Chico Mendes – tornou imperativa alguma forma de participação que viesse, minimamente, a tornar públicos os processos atualmente em curso no município onde viveu, lutou e morreu Chico Mendes. O propósito é, evidentemente, contribuir na tarefa de chamar atenção para a gritante e escandalosa contradição que tem marcado a atuação do Governo do Estado do Acre no que diz respeito à alegada valorização dos trabalhadores da floresta e ao fortalecimento de suas atividades, bem como ao modelo de desenvolvimento posto em prática, apontado como sustentável.

Enfatizo a contradição porque é, para dizer o mínimo, contraditório um grupo político construir toda uma estrutura de poder apoiado numa reclamada tradição de luta dos movimentos sociais de seringueiros, capitalizar politicamente a imagem e as vozes de lideranças como Chico Mendes e dizer que os princípios e valores que regem tal estrutura de poder são os mesmos desses movimentos, ao passo que a prática mostra exatamente o contrário. Como é possível ser herdeiro de uma experiência e, ao mesmo tempo, envidar todos os esforços para confinar, aniquilar, isolar, quando já não foi possível cooptar o que resta de suas manifestações e de seus agentes, como vem acontecendo com Dercy Teles e Osmarino Amâncio? Como se tem visto, é exatamente isso que vem ocorrendo, o que nos alerta para o elevado grau de cinismo a que chegou a comunicação política naquele estado. Aliás, como sabemos, isso não é exclusividade do Acre que, na verdade, segue a trilha de uma longa tradição nacional de cinismo na comunicação política (independentemente ou, para dizer melhor, contrariamente ao que ocorre na prática) o que, por sua vez, é indissociável das bases autoritárias de nossa formação sociopolítica. E por que a ênfase na comunicação política? O que seria a tão propagandeada florestania senão uma grande arquitetura discursiva construída pelo marketing político e pela propagada através de uma difusão midiática massiva apoiada no rigoroso controle dos meios de comunicação locais?

Mas voltando ao sindicato e às lideranças hoje perseguidas e isoladas no contexto do Governo da Floresta (denominação oficial adotada no governo do Acre), é fundamental nos perguntarmos sobre o porquê de tamanha discrepância entre discurso e práticas. Que interesses tão fortes estariam em jogo? A resposta pode estar justamente no modelo de desenvolvimento que se busca consolidar e que essas lideranças, fieis aos princípios que pautaram sua luta nesses últimos 30 anos, se recusam a legitimar por entenderem não ser o melhor para os trabalhadores e para a conservação da floresta, da qual dependem sua existência, a permanência de suas atividades e evidentemente sua identidade como sujeitos e como trabalhadores. Parece ser exatamente este o ponto chave de toda a disputa e das manobras covardes que vêm ocorrendo em Xapuri. Contrariamente ao que se possa imaginar sobre a importância de um simples sindicato de trabalhadores rurais no interior de um estado do interior do Brasil (de acordo com um comentário que li um dia desses num blog da Amazônia), o STR de Xapuri é de importância estratégica. No contexto dessa disputa por legitimidade do modelo embalado como sustentável, o sindicato dos trabalhadores de Xapuri é um instrumento dos mais convenientes: primeiro pelo que representa enquanto marco histórico da luta dos seringueiros daquele município contra o desenvolvimentismo calcado na madeira e na pecuária, nos governos da ditadura. Dispor do sindicato forneceria aos atuais agentes do poder estatal e econômico – de maneira enviesada, evidentemente – aquela relação com a herança dos movimentos que ninguém mais consegue perceber e que está cada vez mais difícil sustentar em público. Porém a serventia maior dessa entidade está no fato não só de permitir maior facilidade na atribuição de falas convenientes a ícones como Chico Mendes, por exemplo, mas no fato de poder dispor do “apoio” legitimador dos sujeitos que hoje ainda vivem e trabalham na floresta. Apoio este que, além de eliminar certos embaraços políticos, facilitaria a exploração madeireira implantada via políticas públicas como carro chefe desse projeto dentro das Reservas Extrativistas, numa dinâmica em que o próprio seringueiro tende a se tornar o madeireiro.

Com se vê, o STR de Xapuri (assim como o da vizinha Brasiléia) não é um “simples sindicato” e suas lideranças atuais – esses, sim, contemporâneos e companheiros de Chico Mendes – são ameaça ao projeto oficial, pois são os poucos representantes ainda atuantes daqueles sujeitos que figuram como objeto das falas oficiais presentes no discurso da florestania, mas que nele recusam se enquadrar.

Como uma das principais testemunhas das disputas aqui mencionadas, seria proveitoso tornar pública uma fala (áudio) de Dercy Teles feita no primeiro Simpósio de Linguagens e Identidades da Amazônia Sul Ocidental, realizado na Universidade Federal do Acre. Numa das programações constava uma mesa intitulada SERINGUEIROS E AGRICULTORES ACREANOS NO CENÁRIO DO MANEJO MADEIREIRO: QUEM FALA E DE ONDE FALA, composta por Miguel Jorge Martins (agricultor do Benfica), Osmarino Amâncio (seringueiro e agricultor da Resex Chico Mendes) e Dercy Teles (presidente do STR de Xapuri). O evento em si já prometia algo bastante interessante graças ao fato, incomum até então na UFAC, de três trabalhadores rurais serem ouvidos por uma platéia predominantemente acadêmica, lugar onde essas vozes geralmente não ressoam para além dos gravadores das pesquisas de campo de certos pesquisadores e nas publicações dos relatórios de pesquisa, mesmo assim lidos por um público muito restrito.

Iniciada a programação, falou Miguel de sua experiência no campesinato, muito boa fala, por sinal, e depois foi a vez de Dercy, que ali fiquei sabendo ter sido a primeira mulher a presidir um sindicato no Brasil, ainda na década de 80. Sem qualquer anotação, com a serenidade, a clareza e a firmeza dos que sabem o que dizem, Dercy começou sua análise do sindicalismo rural no Acre desde os anos dos maiores conflitos até os desafios atuais, quando, segundo ela, se caiu na armadilha de acreditar que os valores do movimento teriam chegado ao poder e que, portanto, não era mais necessário movimento, o que implicou a quase falência dos sindicatos e a desmobilização completa dos trabalhadores. Para Dercy, se os seringueiros hoje migram para a madeira e para a pecuária como atividades produtivas, primeiro, é porque há um estímulo oficial e, segundo, porque não há o necessário e prometido apoio às atividades tradicionais que, por precisarem da floresta para se reproduzir, são as menos impactantes.

Embora tenha acontecido há cerca de um ano e meio atrás, essa fala de Dercy já deixava bem claro o que está em jogo hoje na disputa pelo STR de Xapuri, apontando as motivações e salientando que não se trata de um processo recente, restrito a essa eleição.

Segue o áudio da fala dessa líder sindical que, juntamente com Osmarino, representam as últimas manifestações do que foi um movimento criativo, autêntico e que mudou temporariamente a dinâmica do avanço do capital sobre a floresta amazônica. Essa luta está se travando novamente agora.

Links para o áudio: Dercy Teles e Osmarino Amâncio

Isac Guimarães - Acreano, atualmente pós-graduando em comunicação pela Universidade Federal Fluminense